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Archive for the ‘Linhas imaginárias’ Category

Dou uma última afinação na electroválvula e ligo o circuito de teletransporte. Afasto-me um pouco e fico a observar aquela amálgama de ferro, plástico, fios e fibra, em forma oval e de onde se pode ver destacadamente uma confortável cadeira com um pequeno visor diante dela. Estou exausto e ainda não percebo como fui capaz de construir esta máquina com os meus inexistentes conhecimentos de mecânica, electrotecnia e biotecnologia. Algo me tinha impulsionado a fazê-lo, a meio da noite, naquele limbo entre o sono e o despertar, onde os movimentos mecânicos das mãos apertaram parafusos, fizeram ligações eléctricas e soldaram chapas e ferros. E agora, sem saber se ainda estava acordado ou num sono profundo, ali estava ela, brilhante e chamativa, com a porta aberta e o manípulo ao lado do visor a pedir uso. A minha obra prima construída em tempo recorde. A minha máquina do tempo!

Olho para o espelho enquanto seco a cara molhada com uma toalha. Chegara o momento de testar o aparelho. Vejo uma expressão preocupada e dúvidas que pairam em seu redor. Será que vai funcionar? Pouso a toalha e dirijo-me para a máquina, devagar e a ponderar se a irei testar ou se o mais correcto será dar início imediatamente ao seu desmantelamento. Lembro-me de uma frase ouvida há algum tempo de uma pessoa que muito admiro: “nesta vida, prefiro arrepender-me daquilo que faço, do que arrepender-me de nunca o ter feito”! Dou um salto para a cadeira, fecho a porta e primo o botão start, situado na parte de cima do manípulo. Primeiro um tremor, depois algum fumo. No visor aparecem riscos de várias cores, sem nexo, aleatoriamente. A máquina treme com mais intensidade, enquanto empurro o manípulo para a frente. O fumo entra-me pelas narinas e tenho dificuldade em respirar. A vibração é quase insuportável. Mesmo assim empurro o manípulo com mais força, os parafusos rodam descontroladamente, a cadeira salta furiosamente em cima das molas, o fumo ocupa totalmente a cabina, o meu cérebro já não processa informação alguma, entrando em buracos vazios, um corpo desfeito em moléculas, moléculas em átomos, um turbilhão de protões, electrões e neutrões até ao vazio, até à exaustão, até ao silêncio…

Lentamente desperto desta letargia e olho em meu redor. Estou num comboio suburbano em direcção a Coimbra. Vários passageiros conversam entre si, outros lêem o jornal. Na mão tenho apenas o manípulo da minha máquina, que imediatamente guardo no bolso. No painel de informação aos passageiros a indicação de 14 horas e 25 minutos. Agarro num jornal abandonado em cima do banco da frente e vejo a data.

4 de Abril de 2002.

Fico gélido perante esta visão. O jornal treme-me nas mãos e escapa-se por entre os dedos. A máquina fez-me regressar ao pior dia da minha vida. O dia dos horrores. O regresso ao passado para uma purga interior, uma catarse, um encontro com o diabo. A porta que dá acesso à cabina de condução abre-se lentamente, como se fosse em câmara lenta, como nos sonhos que não conseguimos controlar. Queremos fugir e não conseguimos, apetece-nos levantar e o corpo fica preso no lugar. O maquinista do comboio dirige-se a mim com ar grave e eu quero que ele volte para trás, não quero que fale comigo, não quero ouvir o que ele me vai dizer. A força que faço não surte efeito e da sua boca saem as palavras que trucidam, torcem, vandalizam-me ainda mais as entranhas,

– chocaram dois comboios em Miranda do Corvo e parece que há mortos.

e eu a fazer uma expressão de assombramento e a tentar esconder a dor, a tentar esconder que já sabia de antemão dos cinco mortos no choque frontal das automotoras, dos três colegas de profissão, do amigo com quem partilhava sorrisos e por quem sentia tamanha admiração. Já estou no meio dos destroços, e se o inferno existe, não deve ser muito diferente disto. Óleo misturado com sangue, ferro com roupas, linhas torcidas e vidros partidos. As lágrimas correm-me descontroladamente, o coração bate-me dentro da boca, levito em vez de caminhar. Num ápice estou no hospital de Coimbra, a pouco e pouco vou vendo alguns dos meus colegas de formação, pensos, ligaduras, olhares vazios. Alguns não irão aparecer. Recuo um dia e estamos num restaurante da cidade a jantar. Falamos de coisas banais, contas-me o teu sonho de ir ao Brasil com a tua mulher e as tuas filhas, deixar para trás a rotina do trabalho e do dia a dia. Depois do cinema caminhamos a pé pela cidade e desenhamos o futuro em palavras. No dia seguinte de manhã partilhas um beijo com a tua mulher, pelo telemóvel. Ao almoço, deixo-vos todos juntos e regresso mais cedo a casa. Um abandono empurrado pelo destino, o meu lugar nesse comboio tomado pelo diabo, a minha alma condenada a viver na eternidade da revolta e da dor. As tuas filhas condenadas a crescer sem o teu carinho. A tua mulher condenada a viver sem o teu abraço. Eu condenado a viver sem a tua amizade. Faz frio, encolho-me e enfio as mãos nos bolsos. Encontro um manípulo e sem pensar carrego no botão. O fumo, a trepidação, o meu corpo desfeito em moléculas, moléculas em átomos, um turbilhão de protões, electrões e neutrões até ao vazio, até à exaustão, até ao silêncio…

Sangue. E sorrisos. E lágrimas. E felicidade. Que mistura é esta de estares, que provocam tamanhos sentimentos no meio de uma sala de operações? Estou a filmar pessoas vestidas com batas verdes, toucas brancas, bisturis, luzes, tudo vejo através do ecrã da máquina digital que seguro na mão. Reparo na data no canto inferior direito.

4 de Abril de 2004.

Sorrio com a expectativa da vivência deste dia. Talvez o dia mais feliz da minha vida. A mão treme-me e passado pouco tempo entra no ecrã um pequeno bebé sujo e enrugado, ainda ligado ao seu bebedouro de vida pelo cordão umbilical. O bebé mais bonito que eu já vi, com um choro que ecoa pelo espaço, um choro que precede momentos de muita alegria que irá partilhar com a família e amigos. Saio cheio de emoções daquela sala e abraço o meu primo que me espera lá fora. E mais abraços. E mais beijos. E alegria. Sou pai. Para toda a vida. Olho-a através do vidro e vejo-a crescer lentamente. Vai somando aniversários, vai somando sorrisos atrás de sorrisos. Vai somando felicidade que não se limita a guardar, pelo contrário, distribui por todos os que a amam. É doce e amiga. É um anjo azul que me entra nas veias e adormece por longos períodos as revoltas e as injustiças. É a mulher da minha vida.

– pai, vou viver para outro país.

Os dois abraçados, encolhidos e esmagados pelo peso do destino. Os pratos da balança a competirem entre si, o da revolta e o da aceitação. Nenhum ganha. Perdemos nós os dois. Os soluços que de tanto estarem encravados se soltam como rugidos, saindo em liberdade, a dor que se expande e acalma. E ela, adulta e firme, no alto dos seus quase 6 anos, com a pata do seu urso de peluche a limpar-me os olhos,

– eu nunca te vou esquecer,

firme e hirta, maternal, a tomar conta de mim, os olhos azuis brilhantes e a tentarem dominar a situação,

– eu nunca te vou esquecer, pai!

Abraço-a como se fosse a última coisa que faço no mundo e sem querer aperto um botão de um manípulo que estava debaixo da almofada. O fumo, a trepidação, o meu corpo desfeito em moléculas, moléculas em átomos, um turbilhão de protões, electrões e neutrões até ao vazio, até à exaustão, até ao silêncio…

Estou parado em frente ao meu portátil. Olho para a data.

4 de Abril de 1010.

Não vejo máquina de tempo alguma. Nem manípulos. Apenas um ecrã com caracteres disformes e embaciados. Teclas molhadas que humedecem as pontas dos dedos com que escrevo. Hoje é dia de aniversários. Aniversários da morte e da vida. Como pode a mesma data ser tão antagónica? Como pode a mesma data ser comemorada ou sentida de forma tão diferente? E porque está este conto na secção linhas imaginárias, se a dor e a alegria se misturam na realidade?

Porque, filha, eu quero imaginar que para a semana quando estiveres a fazer o check in no aeroporto, estejas a dizer-me um até já bué rápido, que juntos consigamos transformar anos em meses, e condensar meses em semanas, e encurtar semanas em dias, para que o teu mágico abraço converta novamente a vida em cores vivas e alegres.

Porque, Nach, eu quero imaginar que amanhã quando entrar de serviço te vou ver de manhã com aquele sorriso peculiar e me vais perguntar,

– então Cipras, como é?

E eu vou-te responder, como habitualmente,

– aquela máquina, amigo, sempre aquela máquina!

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Tempo e espaço. Tempo e espaço.

O narrador destas linhas tem o poder de se movimentar pelo tempo e pelo espaço, desmaterializando-se e voando pelos intervalos de barreiras até então intransponíveis, saltando por entre climas e épocas, nadando em águas extensas que cruzam rios e mares. Observa cada pixel de vida, de um mundo que lhe aparece através de uma caixa de televisão, não esses plasmas ou lcd’s modernos, mas antes uma caixa robusta e gigante, com poder e peso suficiente para albergar todas as vidas, todas as almas, todas as vontades e contra-vontades de quem vive ou apenas se arrasta nesta infinita bola azul. Quando algo lhe chama a atenção, mergulha por entre o ecrã e acompanha os risos e as lágrimas de seres que nem imaginam que estão a ser observados, com a curiosidade óbvia de quem acompanha um big brother on line.

O narrador não tem o poder de interferir, apenas de observar. É uma das limitações desta curiosa inutilidade, que faz com que perante injustiças não consiga alterar o rumo dos acontecimentos. E ainda bem, porque os conceitos de injustiça variam de ser para ser, de alma para alma, de pixel para pixel.

Tempo e espaço. Tempo e espaço.

Tempo, algures no recuo de dez anos em relação ao calendário actual. Espaço, cidade capital de um país outrora influente no panorama mundial, agora esquecido na cauda de uma Europa velha e sabuja. Uma rua com uma fileira de árvores de cada lado, vivendas de dois andares, alguns carros de alta cilindrada estacionados à porta. O narrador observa a criança em pé, ao lado do pai, ambos agasalhados da chuva miudinha que cai e do vento que sopra, naquele ocaso de Outono. A criança não terá mais que três anos. Agarra-se à perna do progenitor, sem perceber muito bem o que faz ali. O pai tem o telemóvel encostado ao ouvido, o ar é grave e a expressão de desânimo. O narrador passa por entre a chuva da televisão e funde-se com a chuva miúda que cai, nadando em círculos em redor das duas almas, tentando perceber a razão daquele estar. O olhar cai numa porta envidraçada, que separa a varanda do escritório, no primeiro andar de uma vivenda. Por detrás da porta de vidro, um homem alto e bem-parecido observa os dois invasores da sua calma vivência, que ousaram importunar o momento de leitura do seu jornal diário.

O narrador voa até ali e encosta o ouvido ao telemóvel, que também está ao ouvido daquele homem austero e que quase se confunde com os cortinados pesados do escritório, lenço ao pescoço, fato caro e óculos na ponta do nariz, olhando com um misto de medo e curiosidade, lá do alto do primeiro andar. “Ele está aqui, tem a oportunidade de o conhecer, de o abraçar”, as palavras saem calmas e têm o dom de alterar a respiração do homem que as escuta. Uma mulher entra nesse momento no escritório, rosto fechado, autoritária, decidida. “Não”, rosna ela, puxando-o pelo braço…

Tempo e espaço. Tempo e espaço.

O narrador atravessa a porta de vidro e sai novamente para a rua, faz dois círculos em redor das duas almas que continuam em pé, ao frio e à chuva, e desaparece nos intervalos do tempo, recuando vários anos e deparando-se com outra cena que lhe chama a atenção. O homem do escritório discute com alguém que parece ser a sua filha. Dedo em riste, olhos de fogo, o aviso eterno: “nunca mais! Nem tu nem nada que tenha a ver contigo. Nunca mais!”. Como se o canal tivesse mudado, o narrador encontra-se agora a assistir ao parto daquela mulher. As dores transformam-se num rapaz de quatro quilos, que cresce ali à frente, transformando segundos em meses, choros em gargalhadas, gatinhar em andar, até se encontrar novamente em pé, ao lado do pai, ambos agasalhados da chuva miudinha que cai e do vento que sopra, naquele ocaso de Outono.

Ele está aqui, tem a oportunidade de o conhecer, de o abraçar. É o seu neto, caramba!

O narrador já se encontra novamente no escritório, escondido, se preciso fosse, atrás dos altos e pesados cortinados. A mulher continua a agarrar o braço do homem dos óculos na ponta do nariz. Um “não, não” ecoa pelo escritório e rodopia dentro da cabeça do homem. O narrador posiciona-se agora ao lado dos dois vultos, naquela rua molhada e sentindo, também, o vento frio na face. A imagem por detrás da porta envidraçada vai-se afastando, devagar, recuando novamente para o sofá onde repousa, aberto, o jornal do dia. Agora, através do telemóvel do progenitor apenas se escuta o ruidoso barulho do silêncio. Por mais uns momentos ficam parados, ambos a olhar uma varanda vazia, que dá para um escritório, também ele com uma alma vazia. O progenitor pega no filho ao colo, abraça-o e afastam-se lentamente sem olhar para trás.

Tempo e espaço. Tempo e espaço.

Tempo, calendário actual. Espaço, cidade capital de um país outrora influente no panorama mundial, agora esquecido na cauda de uma Europa velha e sabuja. O narrador fixa a imagem da televisão num adolescente que tenta aprender a tocar violino, irritado por ter tantas aulas teóricas e tão pouca prática. Os pais adoram-no e ele orgulha-se dos sorrisos que abre nos corações de ambos. O narrador, com vários sopros, muda várias vezes de canal, até a imagem se fixar num escritório de um primeiro andar, com cortinados pesados e onde um homem lê um jornal vazio, cada folha depois de outra, alimentando uma alma despojada, um coração despido, um querer esvaziado, uma mente desfolhada, como as árvores daquela rua. Um homem que num segundo de decisão ficou preso para sempre naquele espaço. Um homem que não escutou o seu coração e ficou a saber que o tempo não volta atrás.

O narrador, lentamente, desliga a televisão.

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Ainda se sente o cheiro a novo, quando se abre a porta de casa. Embora ainda um pouco despida, parece-me acolhedora e simpática. Sinto-me bem aqui. Ligo o rádio (hoje só se ouve o Jingle Bell e a Noite de Paz) e tiro do frigorífico o meu jantar de Natal. Um pedaço de carne estufada com puré de batata, que vai fazer as vezes de bacalhau com couves, e uma sopa de espinafres, que me irá aquecer o estômago e alguns cantos escondidos nas prateleiras do meu cérebro. A garrafa de vinho não substitui nada, é original e é um tinto de 14 graus da Estremadura, feito com castas de Aragonês e Touriga Nacional, e vai servir de apoio a este magnífico banquete. Brindo várias vezes a pessoas que me surgem na mente. Brindo à vida de copo cheio; recordo a fome e a guerra com o copo vazio. E continuo a beber. A garrafa está quase no fim. É melhor ir para a cama dormir e esquecer, que amanhã é novo dia. E cambaleando, ainda consigo lá chegar…

Dentes lavados, pijama vestido. Na mesa-de-cabeceira um livro que não sabia que tinha. Leio o título: Conto de Natal, de Charles Dickens. Como veio isto aqui parar? O livro é mais aterrador que o filme. Lembro-me de o ter visto algumas vezes quando era miúdo. Os fantasmas e o Scrooge misturam-se na minha cabeça com um vapor a vinho tinto. O livro escorrega. A cabeça pende. O corpo adormece…

Ding dong!

Acordo sobressaltado! Olho para o relógio, é meia noite.

Ding dong!

Sim, estão a tocar-me à campainha. Saio da cama e tropeço no Conto de Natal, de Dickens. Um calafrio percorre-me a coluna enquanto atravesso o corredor. Será a minha vez de provar a viagem arrepiante com os três espíritos natalícios? Serão os erros do meu passado tão graves que me tenham escolhido de entre milhões para iniciar a minha catarse? Dirijo-me para a porta como o Scrooge do filme, esperando abri-la e ver…

… um velho gordo vestido de vermelho?!

Enquanto abro a porta penso rapidamente no que está a acontecer. Será uma partida da minha mente? O vinho tinto a deturpar-me a visão? Já não penso mais porque um olhar cansado cruza-se com o meu, um gesto de cumplicidade acalma-me, uma voz grossa de milhares de anos pede-me um pouco de repouso.

Sentados à mesa da cozinha, observo-o mais atentamente. É um velho sem idade, com um olhar cristalino por detrás das lentes redondas, que traga um copo de vinho saído do que restava da garrafa. Eu levanto-me e abro outra  de tinto. Tenho um presságio de  que a noite irá ser longa e interessante. Encho um copo para mim também. Percebo que a fadiga se apoderou dele, que mesmo os velhos sem idade se cansam, que mesmo os olhares cristalinos por vezes se turvam. E falamos os dois sobre a felicidade e a alegria do Natal, do conceito da família, do fazer bem, dos desejos, das prendas, dos sorrisos abertos. E de como num ápice tudo volta à normalidade da indiferença, da inveja, das guerras e fomes, misérias e corrupções, interesses e mesquinhices… Diz-me que este dia em que percorre milhares e milhares de quilómetros por entre chaminés, meias e árvores de Natal, compensam todos os restantes em que o Homem não quer Natal. Nota-se que está exausto. Os olhos começam a fechar. Pergunta-me se pode descansar um pouco. Que sim, que é uma honra.

Enquanto fumo um cigarro olho para a roupa que ficou espalhada pelo corredor. Botas pretas, casaco e calças vermelhas, um gorro com uma bola na ponta, uma barba branca e um bigode da mesma cor, um par de óculos. Do meu quarto escuto uma respiração forte, intercalada com alguns roncos. Sorrio sozinho. Tenho o Pai Natal a dormir na minha cama!

Um tinir de um guizo chama-me a atenção. Abro a porta do pátio e vejo uma rena com o nariz vermelho a olhar para mim. Rudolfo, de seu nome, tem atrás de si um gigantesco trenó carregado de presentes, embrulhos de todas as cores. Mais renas estão espalhadas pelo meu pátio. Da porta observo os movimentos delas. Do interior vejo a roupa espalhada pelo chão. Rudolfo pisca-me o olho. E numa fracção de segundo compreendo tudo!

Corro pelo corredor, visto as calças vermelhas, aperto o casaco com o cinto preto, entro no trenó enquanto coloco a barba e o bigode, e já no ar e a uma velocidade estonteante, enfio finalmente um gorro vermelho e rio a bandeiras despregadas enquanto as renas me puxam por baixo de um céu limpo e cintilante. As casas deixaram de ter forma, Cascais dissolve-se com a Damaia, bairros ricos com bairros pobres, uma forma única, um sorriso colectivo, uma alegria generalizada.

Contagiante!

As renas fazem acrobacias, os presentes distribuídos são automaticamente repostos por outros, as estrelas passam e tocam-me. Tão perto delas, reconheço-as. Têm nome! Chamam-se António, ou Amélia, ou Armando, ou Durilde, ou Luís ou Zé João… São milhões que vivem no céu e que já viveram na terra. São felizes. Olho para trás e já não tenho um trenó. Na atmosfera desenham-se carris de fumo, conduzo um comboio sem fim, cheio de crianças felizes, sorrisos e gargalhadas, sem cor, sem credo, sem distinção social. Crianças, apenas crianças, em plenas funções para as quais nasceram. Uma delas chama-me a atenção. O único pormenor que a diferencia das restantes é um pequeno sinal na face direita. Dirige-se a mim com uns olhos azuis a transbordarem doçura e dá-me um beijo. Pergunta-me se lhe dou gomas e eu aceno com a cabeça, tentando disfarçar para não ser reconhecido. Segreda-me “um amo-te muito pai” e dá meia volta para continuar a correr pelas carruagens da felicidade, onde os presentes, as gomas e os chocolates imperam. Tento recordar-me do que me disse. Teria sido descoberto? Com o ruído das outras crianças não devo ter escutado o nome completo. “Pai Natal”, deve ter dito ela!

Já estou novamente num trenó, que lentamente vai perdendo velocidade. Avisto o pátio da minha casa, o corpo está entorpecido, o cansaço impera, os olhos teimam em fechar. Já não me recordo do trenó deslizar suavemente e parar junto à porta da cozinha. O sono é mais forte. Durmo!

Ding dong!

Acordo sobressaltado! Olho para o relógio, é meia-noite.

Ding dong!

Sim, estão a tocar-me à campainha. Saio da cama e tropeço no livro A Cinderela da minha filha. Dirijo-me sobressaltado para a porta, com um misto de desilusão misturado com os ainda vapores do vinho tinto. Afinal não passara tudo de um sonho bonito. O meu vizinho sorri-me quando abro a porta. Oferece-me umas fatias de bolo-rei e uma garrafa de Porto. Desfaço-me em agradecimentos, desejoso de poder voltar para a minha cama e curtir a ressaca da desilusão de uma noite mágica que, afinal não aconteceu. Deixo o bolo-rei na bancada da cozinha e decido beber um copo de Porto. Abro o armário e não encontro copos. Só tenho dois, utilizei um ao jantar, o outro tem que estar algures. Na máquina de lavar também não está. Sento-me à mesa e pouso a garrafa, rendido. O meu olhar perdido colide com dois copos, ainda vermelhos de tinto. Dois copos?! Mas…

Levanto-me repentinamente, num salto estou à porta que dá para o pátio ainda a tempo de avistar um trenó enorme puxado por renas, deixando para trás um rasto luminoso de alegria! Fora verdade! E rio, rio até não poder mais, até as lágrimas da felicidade correrem pelo meu rosto. Porque tivera a melhor prenda de Natal, num dos piores Natais até então passados: por uma noite, eu fora o PAI NATAL!

E sei também, agora, porque fui eu o contemplado: porque desde pequeno, adolescente ou adulto, eu sempre acreditei nele. Aquele que avisto lá ao longe, cada vez mais distante, mas ainda audível com a sua voz grossa de milhares de anos…

OH, OH, OH, FELIZ NATAL!

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Rainha Tia_0002Era uma vez…

Era uma vez, porque todas as histórias de fadas e príncipes começam assim. Mas onde existem fadas e príncipes, coabitam obrigatoriamente bruxas, fadas más, duendes e dragões. Esta é a história de uma rainha má, simpática, mas traiçoeira, sorridente, mas a destilar veneno, e culta, mas sem usar a cultura.

Era uma vez…

A rainha má não tem nome. Chamemos-lhe, então, e para não usar tantas vezes este péssimo adjectivo, Rainha Tia. Nome simples e singelo, como ela gosta de ser e dar-se a mostrar.

Rainha Tia vive numa ilha conquistada, por ela, a D. Filipe, uma ilha sem nome e onde é a lei, uma ilha onde o absolutismo impera e quem não está com a rainha, está contra ela. Vamos baptizar também a ilha, e chamemos-lhe Isla Rica. Não por ser um lugar onde abundam várias riquezas, como petróleo ou diamantes, mas sim pela imensa cultura e boa educação com que os seus habitantes se tratam. Rainha Tia não tolera má educação, palavras erradas, má dicção. Governa com punho de ferro, impondo normas e leis que deverão ser rigorosamente seguidas pela população. Períodos de leitura obrigatória, oralidade, escrita, tudo na sua presença e impondo castigos severos a quem não consegue atingir níveis por ela definidos. Tudo parece fluir normalmente e com aparente felicidade em Isla Rica, e Rainha Tia adormece tranquila e feliz, com a lembrança da contribuição pessoal para o desenvolvimento da cultura e dos bons costumes. Depois de engolir tranquilamente o seu gin tónico e de ler mais uma estrofe de Florbela Espanca, Rainha Tia aproxima-se do seu espelho e pergunta, como sempre:

– Espelho, espelho meu, existe alguém mais sábio, culto e interessante do que eu?

– Não, Rainha minha, vossa majestade é a pessoa mais sábia, culta e interessante do reino, e nem o Conde Alberto João Jardim e o Príncipe Valentim Loureiro lhe chegam aos calcanhares em tamanha delicadeza em palavras e actos.

Rainha Tia passava os dias absorvida na sua cruzada contra os infiéis ignóbeis e ignorantes, que nem sequer sabiam sinónimos simples e perfeitamente ao alcance da população:

– Não me diga que não sabe que oscular significa beijar? Está a ver deste meu lado esquerdo? Imagine um casal a beijar-se. Agora veja ao meu lado direito. Está a ver? O mesmo casal a oscular-se. Então diga-me: imagina viver  feliz o resto dos seus dias, sem saber este sinónimo? Pois é, é por isso que vivo cada dia com satisfação, porque contribuo para a grandeza e seriedade da enorme instituição que é esta ilha!

Um dia, Rainha Tia decidiu organizar uma festa. Este evento deveria ser comemorado com pompa e circunstancia. Matar-se-iam cinquenta porcos, cada um de modo diferente, para se poder sentir os cheiros, os sons, para que tudo fosse festa do princípio ao fim. Aproveitou o regresso dos valorosos guerreiros do reino, que chegavam após mais uma batalha, sedentos de vontade de sexo, para que tivessem relações sexuais à bruta. O importante era apenas preservar o acto sexual como um rito de passagem. No dia da festa fizeram-se excisões e bateram-se com varas nos pénis dos rapazes, para que se fizessem homens. As mulheres menstruadas foram obrigadas a ficar em casa, por estarem impuras e não poderem olhar para os homens.

A festa correu lindamente e Rainha Tia sorria sibilante pelo sucesso alcançado no reino. Tudo corria na perfeição. À noite, depois de beber mais um gin e ler outra estrofe de poesia, perguntou ao espelho,

– Espelho, espelho meu, existe alguém mais sábio, culto e interessante do que eu?

– Na verdade, minha rainha, existe!

Rainha Tia ficou petrificada. Os céus abriram-se para os relâmpagos caírem e os mares secaram para que o fogo lavrasse em seu lugar. A terra tremeu e o tempo parou!

– Atreves-te? Tu estás ciente do que me estás a dizer? Espelho canalha, parto-te todo, desfaço-te em mil pedaços…

– Sim, minha rainha, é precisamente por isso. Apenas tenho tido compaixão por vossa alteza. Depois de partir os dois anteriores espelhos, vossa alteza está há catorze anos sem, digamos sem a querer ofender… Bom, vossa alteza sabe o que acontece à vida sexual das pessoas quando partem espelhos, não é! Apenas a tenho estado a ajudar, pois esse período está quase a terminar. Por isso tenho-lhe mentido. Na verdade existem muitas pessoas mais sábias, cultas e interessantes que vossa alteza. E também é verdade que isso não é importante, pois o que é relevante é aceitar as diferenças, ser compreensivo, ajudar e ser ajudado, se tolerante e descer dos pedestais de onde nos encontramos, para olharmos ao mesmo nível dos outros. Sempre com o respeito em relação ao próximo. E sempre com a certeza de que são as suas diferenças que nos fazem crescer. Aprender com os demais, e ao ensinar, aprender também. Com os mais ou menos interessantes. Com os que estão ou com os que passam. Com os que participam ou com os que apenas observam. Com os brancos e pretos, homossexuais e heterossexuais, altos ou baixos, carecas ou com cabelo, com os que nasceram nos anos 50 ou os que nasceram nos anos 80, mulheres inférteis ou mulheres grávidas…

– Calaaaaaaaaa-te já!…

A Isla Rica transpira um silêncio, agora, aterrador. Por entre mil pedaços de vidro jaz uma pobre rainha, afinal prisioneira dos seus medos, que soluça compulsivamente. As lágrimas são por saber que, afinal, é feita de carne e osso e que os seus poderes eram alimentados por um ego enorme e um orgulho tenaz. E o sorriso perdeu-se eternamente, porque num acto irreflectido de loucura, cavou a sepultura de mais sete anos de abstinência sexual!

Era uma vez…

Era uma vez, porque todas as histórias de fadas e príncipes começam assim. E em todas, eles vivem felizes para sempre.

Excepto as bruxas, os duendes e os dragões. E também as rainhas más!

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LiaNaquela noite, Lia teve um sonho. Depois ficou acordada, deitada de costas, com as mãos atrás da cabeça, enquanto tentava recordar-se do que lhe tinha invadido a mente enquanto dormia. Ficou imóvel até a escuridão se tornar cinzento-azulada, e depois tomou um banho. Já estava atrasada para iniciar as lides do dia, e sabia que a madrasta em pouco tempo estaria a solicitar os seus serviços. Enquanto enchia a tina de água morna, recordava novamente o sonho, e pressentia-o como algo de bom que lhe iria acontecer. Algo que modificasse a sua vida, tão escravizada, tão cativa e tão privada de brincadeiras, de risos e de felicidade. Lia sorriu por entre os cabelos aloirados, como há muito tempo não sorria. Desde que perdera a sua mãe, nunca mais uma gargalhada brotara da sua garganta. Desde então, Lia estava ao cuidado da sua madrasta, que na verdade era uma tia afastada, mas que fazia questão que a tratasse como tal.

Faltava pouco para o sol começar a incidir por entre as janelas do enorme casarão onde viviam as duas. Dele faziam parte inúmeras galerias e quartos que Lia se encarregava de limpar, esfregar, lavar e voltar a limpar. As refeições estavam também a seu cargo, assim como o cuidar do jardim e a lavagem da roupa. Além de tudo isto, tinha ainda a obrigação de servir a sua madrasta em tudo o que fosse necessário, desde dar-lhe banho, deitá-la, ou até mesmo levar-lhe um simples copo com água.

-Lia! Prepara-me o banho e faz-me o pequeno-almoço.

Mais um dia que começava, um dia igual a tantos outros, com a companhia do trabalho e do sofrimento, com a esperança de uma liberdade que sabia perdida. Mas algo lhe dizia que este dia iria ser diferente!

O ocaso surge na tarde, e Lia, com os seus catorze anos, trabalha com a força de vinte mulheres, de maneira a poder descansar os trinta minutos habituais desta altura do dia. Sabe que é habitual a madrasta dormitar enquanto admira o pôr-do-sol, e aproveita esse tempo para se refugiar num dos sótãos da enorme casa e aí poder viajar nas histórias maravilhosas e fascinantes dos poucos livros que trouxera de casa da sua mãe. Sentia então a frescura dos mares e o calor dos desertos, montava a cavalo nas pradarias, vales e montes, corria na savana tropical ao lado de tigres, elefantes e girafas. Era o prazer momentâneo de se sentir livre e feliz, este que Lia experimentava nesta meia hora diária de satisfação.

– Onde estás?! O jantar já está pronto?! As velas já estão acesas?

É o retomar do trabalho, o apagar do sonho. Lia sabia que dificilmente se livraria deste modo de vida, desta escravidão herdada, embora continuasse a sonhar. O sonho, o dessa noite, não lhe saíra ainda do pensamento. Recordava-se vagamente de haver muita luz e calor, mas não conseguia reconstrui-lo totalmente.

Lia ajuda a madrasta a despir-se e espera que esta se deite. Como sempre, aguarda que ela adormeça e só depois deste ritual imposto se dirige para o seu quarto. O cansaço e a fadiga invadem-na. Pousa a vela na mesa-de-cabeceira e começa a despir-se. Os olhos quase cerrados fazem esforço para se manterem abertos. Deita-se, e antes de cair num sono profundo, tem ainda tempo de viajar um pouco pelos mundos fascinantes que nunca conhecerá…

A brisa que corria no ar é agora mais forte. Pouco tempo falta para surgir um vento frio que invade o espaço e penetra pela janela aberta do quarto. Lia vira-se para um lado, e pouco depois para o outro. O sonho da noite anterior, voltou-lhe a ocupar a mente. Calor, muito calor e muita luz. Uma lufada de ar mais forte. A vela tomba e rebola para baixo dos cortinados. O calor aumenta e a luz, minúscula de início, torna-se maior, e maior, e maior…

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Um garoto brinca nos destroços onde outrora existira uma casa. Uma casa enorme, onde vivia uma velha muito má, constava-se. Mas, segundo lhe contaram, vivia também uma menina muito boa, talvez uma fada ou um anjo. Ao brincar descobre um objecto, talvez o único a escapar inteiro a um grande incêndio que ali houvera. É um livro! O garoto folheia algumas páginas e detém-se numa figura que lhe causa admiração. Como ele gostaria de estar no lugar daquela menina alourada, com lábios finos, que corre repleta de felicidade na savana tropical ao lado de tigres, elefantes e girafas…

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