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CortaaaaaDokumente!

A ordem rude e autoritária é dada por um oficial alemão. Alto, cabelo alourado cortado rente, mãos atrás das costas e olhar frio e cortante. No braço esquerdo é visível uma cruz suástica e o padre que desembarca do comboio parece surpreendido e atordoado com esta recepção.

Dokumente!

A ordem é repetida, desta vez a roçar a violência verbal. O enorme cão ao lado do oficial começa a ladrar e alguns passageiros baixam a cabeça ao passar pelos intervenientes nesta acção. Debaixo das carruagens do comboio sai um fumo proveniente do aquecimento, o que dá um ar mais assustador à cena. A estação é escura e lúgubre, à imagem destes anos do início da década de quarenta.

Esta estação ferroviária poderia ser qualquer uma na Alemanha de Hitler, mas não é, porque… é a de Mafra, na linha do Oeste, em Portugal!

Ninguém sabe o que aconteceu ao padre. Para saber o resto da história temos que ver o filme The Garden of Redemption, uma produção americana que foi parcialmente filmada em Portugal, cinquenta e cinco anos depois de ter terminado a Segunda Grande Guerra. É um privilégio participar neste tipo de acções e perceber a realidade do que está por detrás das filmagens, fazer parte oculta do filme, da novela, do anúncio que está a ser filmado, olhar para a televisão e pensar que para filmar uma cena de dois minutos foram necessárias muitas horas de “acção-corta-vamos repetir”.

Por vezes algumas indicações são dadas ao realizador, pormenores que passam despercebidos a quem desconhece o meio ferroviário. No filme Capitães de Abril, de Maria de Medeiros, o comboio que leva Salgueiro Maia para Santarém partia de Santa Apolónia com o sinal de saída visível em branco, o que significa manobras, para simplificar as repetições da cena. Puxa à frente, recua, puxa à frente, recua, vezes infinitas. A minha indicação foi a de abrir o sinal em verde, pois seria isso o que mais se adequaria à realidade, o que foi prontamente aceite pelo realizador. Mas o mini protagonismo é imediatamente deitado por terra quando toda a gente faz uma pausa de meia hora, às três da manhã, para um briefing e eu fico esquecido na cabine de condução. Lá se foi a minha oportunidade de conviver com estrelas cintilantes da lusa Hollywood!

A linha do Oeste é pródiga em filmagens. Talvez motivadas pelo pouco tráfego ferroviário, pelas estações quase desertas e que vão mantendo a sua traça original, algumas produções têm sido rodadas nessa linha. Além de Mafra, recordo-me de ter participado em dois anúncios em Dois Portos: um para a TMN, onde vários telemóveis gigantes fugiam não me lembro de quem, outro para o BES, com a Lúcia Moniz pendurada na janela da carruagem a despedir-se do namorado. A estação do Bombarral também foi transformada em Figueira da Foz, em 1995, no filme Sinais de Fogo, baseado no romance de Jorge de Sena e realizado por Luís Filipe Rocha. Poucos anos depois, no ano 2000, a mesma estação serviria também para a rodagem da série televisiva Alves dos Reis, de Francisco Moita Flores.

Mas de todas as filmagens, a que mais me recordo foi a da telenovela Vila Faia, numa acção rodada no Outeiro. A cena era simples: alguém com muita idade esperava na estação outro alguém muito mais novo (um neto julgo eu, não memorizei as ligações familiares). A cena era filmada sem cortes, em contínuo. A minha função era trazer o comboio até à estação, com a locomotiva e respectivas carruagens a efectuar paragem na gare, de onde desembarcaria um jovem a quem o avô iria envolver num longo e sentido abraço. No entanto esse abraço resultaria numa enorme comoção, em lágrimas e num quase fatal ataque de coração, com uma dor lancinante a apoderar-se do idoso que viria a desmaiar no chão frio da plataforma de serviço. Entretanto já eu tinha saltado da máquina e acompanhava a cena num dos monitores próprios para o efeito. E o que vi a seguir gelou-me completamente…

Um factor novato que desempenhava funções de chefe de estação no Outeiro entra de rompante na cena, com um copo com água na mão e ajoelha-se ao lado do idoso, gritando,

– um médico, não há aqui nenhum médico? Peçam ajuda, porra, está a dar uma coisa ao homem!

Claro que a palavra mágica ouviu-se de imediato, proferida quase do mesmo modo que o oficial alemão. Não, não foi dokumente, foi corta, mais propriamente,

– COOOOOOOOOORTAAAAAA! MAS QUE MERDA É ESTA?! VAMOS TER QUE REPETIR TUDO!

Entre gargalhadas de uns e embaraços de outros, toda a gente regressou aos seus postos. A cena foi repetida e desta vez sem complicações. O novato factor desapareceu de cena até as filmagens terminarem, mas ao ter entrado na acção estava, sem se aperceber, a rebaptizar-se, como se se tivesse despido do seu nome verdadeiro e, no meio ferroviário, passasse a ser conhecido por outra designação: o “Vila Faia”. O único ferroviário da rede nacional que se preparava para despejar um copo com água na cara do Nicolau Breyner!

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